Nasci em 1942, em Campo de Ourique. Passei sete anos da minha vida em Portalegre, para onde o meu pai, professor, foi deslocado para se efectivar. Regressei a Lisboa em 1958 e vim morar para as avenidas novas, precisamente para a avenida dos EUA, muito perto do cruzamento com a avenida de Roma. O Café Restaurante Vavá existe desde esse ano e foi um dos meus cafés de eleição. Os outros foram a Grãfina e o Nova Iorque, um em frente do outro, no final da avenida dos EUA, lado Campo Grande.

Além de mais, tem sido o meu café-restaurante prioritário, acompanhei todas as transformações, lidei com todas as gerências, fui assistindo à reciclagem da clientela, e descobri que o espaço, apesar de tudo, se mantém como local de culto e de saudosa romagem. Por isso vale a pena contar a história física, que é pouca, mas sobretudo recordar o espírito do lugar, que se conserva, muito para lá das vicissitudes do tempo e dos circunstancialismos vários da vida de cada um.

Julgo ser, por isso, uma pessoa bem informada para dar conta do recado, ainda que nestes casos, o recado, por muito factual que se queira, tenha sempre de ser subjectivo, com o que a posição comporta de risco, mas também de sinceridade. O meu testemunho não é totalmente imparcial e a tender para o abstracto, antes se afirma desde início, pessoal e apaixonado. Esta será uma “visão”, uma “visão” possível entre muitas outras, de um espaço que vem cumprindo, vai para cima de seis décadas, a função para que foi criado. 

OVavá nasceu em 1958, criado por uma dupla de gerentes, dois irmãos, Petrónio e Luís Gonzaga. Irmãos que apenas se pareciam no apelido, e igualmente na gentileza, dado que um era basto volumoso, de presença imponente, arrastando por detrás do balcão uma bonomia ruborizada, enquanto o outro, mais discreto e aprumado, ia deslizando delicadamente pelo mesmo balcão. Às vezes em simultâneo, outras revezando-se no comando das operações.

O Vavá que eles idealizaram era um espaço enorme, que abrangia o que ainda hoje lhe compete, e ainda o que o Banco BPI agora ocupa e lhe comprou. O Vavá não era apenas o dobro, em extensão, à superfície, mas ainda possuía uma extensa cave, onde se encontrava uma, na época, muito disputada sala de bilhares.

A decoração inicial produziu o milagre que ainda hoje perdura, apesar de pouco restar dela presentemente. Mas todo o recinto ganhava um ar acolhedor e recolhido, com as madeiras de um castanho-escuro, os maples de couro, igualmente de castanho-escuro, colados juntos às paredes, circulando todo o espaço. Mesas e cadeiras a condizer e um balcão que dividia a sala em duas, sem as tornar isoladas, como hoje acontece, pela intromissão de uma parede que não fazia parte da estrutura original.

Ailuminação era dourada, discreta, difusa, pequenos candeeiros desciam do tecto sobre as mesas, o ambiente era intimista, o que terá seduzido a clientela destas avenidas novas que iam surgindo lentamente por estes lados.

Não muito longe do cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos EUA, nesta praça onde se encontram frente a frente o Vavá e o Luanda, começavam as quintas e os quintais, viam-se rebanhos de ovelhas e cabras e cultivavam-se as couves. Paulo Rocha fala dos “Verdes Anos” destes locais no seu filme, um dos que abriu caminho ao Novo Cinema Português (curiosamente o Novo Cinema marchou lado a lado com o Vavá, mas disso falarei mais a frente). 

Avenidas Novas, vidas novas, novos arrendatários. Quem veio habitar estes bairros foram os filhos da burguesia endinheirada, num período em que a estabilidade social e uma ligeira abertura ao exterior permitiram a ascensão de novas classes profissionais, vivendo com relativo desafogo, que lhes possibilitava pagar rendas mais caras, e usufruir de maior qualidade de vida.

Do Areeiro à Avenida do Brasil, a Avenida de Roma era o exemplo da modernidade em Lisboa. Aqui se vinham descobrir as novidades, na moda, nos usos e costumes. Os quarteirões encheram-se de jovens de novas profissões: publicidade, moda, canção, cinema, televisão, aviação, arquitectura, decoração, etc. Mas, por detrás dessas luxuosas avenidas novas, existiam novos bairros de habitação social que contribuíam igualmente para o aparecimento de uma população diferente e diversificada.

Foram esses os frequentadores habituais do Vavá nesses primeiros anos. Foram eles que criaram o estilo da casa e impuseram um tom. Aberto até de madrugada (fechava às duas da manhã), permitia a criação de tertúlias espontâneas, de amigos e conhecidos que todas as noites ali se reuniam para falar e discorrer sobre os mais variados temas, com a política sempre como prato de resistência.

É importante referir que os finais da década de 1950 e o início da de 60 foram tempos difíceis para o governo de Salazar. Poucos meses depois das eleições de 1958, que opuseram Humberto Delgado a Américo Tomás, e que este haveria de ganhar com batota descarada, abria o Vavá. Iniciava-se igualmente um tempo de revolta e conspiração sem precedentes na história do Estado Novo.

Em todas as tertúlias lisboetas se comentava o que não se podia saber pela informação escrita, radiofónica ou televisiva (a RTP acabava igualmente de iniciar as suas transmissões) e se soprava de ouvido a ouvido. O Vavá não era excepção. Congregando clientes já de alguma idade com a rebeldia da juventude, o Vavá era local de conspiração certa (segura nunca seria, pois “os olhos e os ouvidos” do regime estavam um pouco por todo o lado).

A proximidade da Cidade Universitária criava outra clientela, maioritariamente irreverente e interventiva. Os alunos que vinham estudar para a capital escolhiam quartos de abrigo perto das faculdades. Este era outro potencial cliente, que o Vavá logo aglutinou. A contestação universitária que eclodiu em pleno durante a crise académica de 1962 foi dispersando pólos de inquietação. Os cafés eram centros de estudo, mas igualmente focos de rebelião, onde se discutia e se organizava a revolta.

Tínhamos assim uma fauna variada, de extractos sociais diferenciados, profissionalmente irreverente e moderna, maioritariamente jovem. Entrando no café numa noite de inverno ou atravessando a esplanada numa solarenga tarde de verão, eles estavam lá, em pequenos grupos que se distinguiam pelos interesses profissionais ou pelos escalão etários, mas que por vezes se interpenetravam e fundiam em grandes grupos de amena cavaqueira.

Em Novembro de 1993, para uma revista então publicada pela livraria Barata, escrevi um texto que não resisto a recuperar. Dizia assim:

O café, enquanto local, e não só chávena, e não só bebida, refere duas realidades, ambas de agradável evocação: a bica, que se toma, e a tertúlia de amigos com quem se fala, enquanto se bebe a primeira.

Muitos escritores têm relembrado, em saborosos textos, tertúlias célebres ao longo das décadas. Não vem ao caso historiar, mas Lisboa esteve bem provida destes locais de referência obrigatória, e não há certamente quem ignore o papel do Martinho da Arcada, da Brasileira do Chiado, do Nicola, do Café Gelo, do Monte Carlo, do Ribadouro, de tantos e tantos outros. Escritores e pintores deixaram marca num local, actores e encenadores eram habituais noutros, os cinéfilos reuniam-se sobretudo no antigo VaVá,  mesas pegadas com cançonetistas e baladistas dos idos de 60, e, antes do 25 de Abril, políticos e “gente do reviralho”, como então eram chamados os opositores ao regime, apareciam um pouco por todo o lado, acumulando funções na maioria dos casos.

Os cafés eram locais de encontro, logo depois do almoço, e antes de se entrar no trabalho, ou a seguir ao jantar, prolongando-se então a cavaqueira pela noite dentro, até que as portas do café fechassem, e muitas vezes até para lá do seu encerramento. Nunca antes das duas ou três da matina. Muitos artigos se escreveram, muitos romances e poemas se pensaram, muitos espectáculos se montaram, muitos filmes se idealizaram, muitos quadros adquiriram ali cores e formas, muitos governos caíram e muitos outros se formaram à mesa de um café de Lisboa, do Porto, de qualquer cidade do interior de Portugal.

Não havia ainda televisão em doses industriais, para agarrar audiências pelos processos mais singulares; não havia internet, chats, blogues ou Facebook; não havia ainda Betas, VHS ou DVDs para se verem os filmes em casa; não havia concertos rocks todos os dias, nem espectáculos a toda a hora; não havia as drogas pesadas a influir negativamente nos horários dos donos dos cafés, que se querem ver livres de tão ingratos clientes, e fecham muito mais cedo; não havia a ameaça da violência urbana que apesar de tudo pesa sobre o comportamento de muita gente que prefere a segurança do lar à incerteza das ruas; nem havia, sobretudo, estes mercantis balcões de agora, onde as pessoas tomam apressadamente café, enquanto outras comem sofregamente uma sopa e pastelinhos de bacalhau, bifanas ou mesmo “pratinhos” de feijoada à transmontana, antes de regressarem ao seu balcão no centro comercial ou à secretária no escritório. 

Dos meus tempos de Universidade, relembro cafés inesquecíveis. Desde logo, o bar da Faculdade de Letras, onde se estudava a vida, quando se faltava às aulas, para se discutir um filme, uma peça de teatro ou um livro, onde se tentava mudar o mundo à medida dos nossos sonhos, ou simplesmente se namorava uma colega, quando o tempo não estava de molde a poder-se sair com ela até ao estimulante verde do discreto estádio universitário.

Depois, à tarde e à noite, estudavam-se as matérias, em mesas de outros cafés, por apontamentos emprestados por quem assistira ao verbo do Professor. Por mim, que morava então em casa de meus pais, na Av. EUA, os mais utilizados eram o Nova Iorque, hoje transformado em banco, e a Grãfina. Mas muitas noites as passava também entre o Monte Carlo e o Monumental, espreitando actores e actrizes com quem se procurava meter conversa, ou sendo lentamente perfilhado por tertúlias de escritores, jornalistas, pintores e excêntricos avulso.

Pouco a pouco, fui subindo avenida acima, até ao VáVá, que então tinha bilhares e cave, e não era ainda metade banco e metade pastelaria. Ali se reunia o grupo de cinéfilos, que observava de longe, e o dos cantores, que ouvia na rádio e muito pouco na TV estatal. Com breves incursões pela Suprema, pela Sul-América e pelo Luanda, adoptei o Vává como segunda casa, ali fiz amizades e vi partir amigos, ali conheci amores e desamores, ali escrevi e li, ali pensei guiões e filmes, dali parti com equipas de filmagem para a serra da Estrela, para Sintra, para o Alentejo, ali filmei mesmo uma sequência de um deles, ali vi rodar alguns outros, ali me despedi do 24 e ali saudei o 25, há quem diga que ele é a minha sala de jantar (quanto muito seria a de almoçar), e um prolongamento do meu escritório.

OVává foi mudando com os anos, deixando sempre saudades do velho Vává, de maples de cabedal castanho encostados às paredes, de luz difusa e discreta, de acolhedor conforto. Ali conheci o Manuel Guimarães, que seria meu padrinho de casamento e padrinho cinematográfico, cedendo-me umas bobines de película virgem do seu derradeiro “Cântico Final” para eu realizar uma das minhas primeiras curtas-metragens; ali conheci melhor o Manuel de Azevedo, o Villas-Boas, o Rafael, o Pinto Bandeira, o Manuel Costa e Silva, o Sam, o Pedro Bandeira Freire, o João Maria Tudela, o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes, o Fernando Silva, o Mário Damas Nunes, a Acácia Thiele; ali continuo a encontrar o Manel, o Fanan, o Vasco, o Mário, o Rangel, a Lena, o Carlos, e tantos outros, alguns deles agora já acompanhados das respectivas e respectivos, com a prole a gatinhar por entre mesas e cadeiras, ganhando já, se calhar, o mesmo “vício” de ali se encontrarem no futuro; por ali passam também personagens bisonhas de tristes recordações, ali ficam suspensas memórias efémeras ou persistentes, ali se discute o presente do cinema, do xadrez, da televisão e da canção portugueses, ali se debate o futuro da TAP, ali se comentam, à segunda-feira, os “roubos” dos árbitros, invariavelmente a prejudicarem o Sporting e a beneficiarem quem se sabe, por lá passava ao fim da tarde o Frederico, na volta do colégio, para a Cola e o bolo da praxe, ali descia e desço com a Eduarda para tomar o café, antes de ir para o cinema ou de regressar a casa, para um serão televisivo.

Os cafés de Lisboa tendem a desaparecer, e os que restam são já sombras de um passado que procuramos apesar de tudo manter vivo, contra a arremetida das leis inexoráveis do comércio, da cobiça dos bancos, do poder da televisão, da proliferação de bares e discotecas. São, aliás, os bares e as discotecas que, de certa forma, vieram a ocupar o lugar desempenhado pelos cafés, reunindo tertúlias de amigos, agora ao som da música de momento. Até esta transferência é significativa da mudança dos tempos. Em lugar do café, bebe-se whisky ou vodka; em vez do espreguiçar do pensamento em redor da bica bem quente, gritam-se frases rápidas por entre dois compassos mais trepidantes. Nem melhor, nem pior. “Tudo é feito de mudança”, como dizia o poeta. “A nostalgia não é deste mundo”, como explicava Signoret. E as bicas bem quentes continuam a incendiar a imaginação dos poetas. Que nunca dispensaram outros “acompanhamentos”, a começar pelo absinto.

Aúltima grande transformação do Vavá data de 2017, quando a empresa Petrónio e Gonzaga, Lda foi comprada aos anteriores proprietários pelos sócios Pedro Ferreira e João Simões. O café restaurante sofreu uma profunda remodelação, mantendo e reabilitando o espólio artístico (as obras de Menez foram todas restauradas por especialistas), tarefa levada a cabo por familiares dos gerentes, a designer Mafalda Ferreira e o arquitecto paisagista Filipe Pedro. A inauguração aconteceu a 21 de Julho de 2017 e, não muito depois, a casa foi considerada “Loja com História” pela Câmara Municipal de Lisboa.

Muitos se perguntam por quê a designação Vavá?

Estranha homenagem a um jogador brasileiro que aparece a dar nome a um café restaurante no cruzamento da av. de Roma com a dos EUA, em Lisboa. “Vavá” era mesmo o nome por que era conhecido Edvaldo Izídio (Recife, 12 de Novembro de 1934 – Rio de Janeiro, 19 de Janeiro de 2002), jogador brasileiro de futebol, bi-campeão mundial nas copas de 1958 e 1962, conhecido também por “peito de aço”. Nascido no Recife, Pernambuco, foi como avançado da selecção brasileira bicampeão mundial nas campanhas da Suécia (1958) e do Chile (1962). Iniciou a sua carreira no Sport de Recife, transferiu-se depois para o Rio de Janeiro (1952), para jogar no Vasco, passou pelo Atlético de Madrid, Palmeiras, América do México, San Diego, dos EUA, e Portuguesa do Rio. Conquistou dois campeonatos cariocas pelo Vasco da Gama e um paulista, pelo Palmeiras, além das duas Copas do Mundo pela selecção.

Era visto como o clássico “matador” de grande área: oportuno, sem muita técnica, mas dono de muita garra e inteligência táctica, além de bom a jogar de cabeça. O seu vigor físico valeu-lhe o apelido de “Peito de Aço”. Marcou nove golos pelo Brasil em Copas do Mundo, e em 22 jogos pela selecção brasileira, contabilizou 14 golos. Foi auxiliar técnico de Telê Santana (1982) na selecção brasileira que disputou a Copa da Espanha. Morreu aos 67 anos, na Clínica São Victor, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, após internado por três dias com insuficiência cardíaca, e enterrado no Cemitério do Catumbi.

Porque se chama Vavá o café restaurante a que estamos a dedicar este texto, eis um enigma que não conseguimos decifrar. Numa época em que no Brasil havia Pelé e Garrincha, porquê optar por Vavá? Um mistério a que pouca gente dá qualquer atenção. Curiosamente, os nomes fixam-se e raras vezes se procura encontrar uma razão para a sua escolha. Vavá é hoje em dia algo abstracto que, neste caso, designa um café, nada mais. Uma sonoridade apenas.

Mas esta sonoridade faz retinir recordações e memórias de outros tempos. No final da década de 1950 e na de 60 do século passado o Vavá foi local de encontro e de tertúlias diárias de uma certa inteligência nacional, urbana, resistente ao Estado Novo, ponto de encontro de diversos grupos sociais. Um deles, os jovens do que viria a ser chamado o novo cinema português, onde pontificaram os nomes de Fernando Lopes, Paulo Rocha, António Pedro Vasconcelos, Alberto Seixas Santos, António da Cunha Telles, João César Monteiro, Manuel Costa e Silva, entre outros que habitavam perto e ali se reuniam diariamente, à noite, para a bica da praxe e a conversa habitual. Foi aqui que se convencionou ter nascido o novo cinema português, que um filme como “Verdes Anos”, de Paulo Rocha, confirma (grande parte filmado no edifício do próprio Vavá onde então morava o seu realizador).

Rodagem de “Verdes Anos”, de Paulo Rocha, no Vavá.

Mas o café não era apenas refúgio de jovens cineastas, mas também de um ou outro veterano, como era o caso de Manuel Guimarães, o mais conhecido realizador português a testemunhar a influência do neorrealismo italiano no nosso país, com títulos como “Saltimbancos” ou “Nazaré”. Não confraternizavam todos na mesma mesa, o conflito geracional existia. Guimarães era frequentador de uma outra tertúlia, onde surgiam vários opositores ao regime, “malta do reviralho”, como então eram chamados, como Aquilino Ribeiro Machado, engenheiro, filho do escritor Aquilino Ribeiro e futuro Presidente da Câmara de Lisboa, entre 1977 e 1979, Dias Amado, professor da Faculdade Ciências, Manuel de Azevedo, jornalista do “Diário de Lisboa”, Aventino Teixeira, coronel, um dos capitães de Abril, Pinto Bandeira, o artista plástico Sam, Rafael, proprietário de uma agência de publicidade, entre alguns mais. Senhoras de certa idade eram raras. Uma delas era a mulher de Manuel Guimarães, a Dª Clarice, que acompanhava sempre o marido.

Raparigas novas também havia e muitas, como a belíssima Ana Maria Lucas, Miss Portugal, muito disputadas, sobretudo com muitos olhinhos para os jovens estudantes universitários e os nomes da canção nacional, como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Carlos Mendes, ou os novos talentos do recém aparecido rock português, da “Sétima Legião”, que ensaiavam num prédio fronteiriço, dos “Xeiques” ao celebérrimo Zé Pedro, dos “Chutos e Pontapés”. Daniel Bacelar, o pioneiro, e João Maria Tudela, de “Kanimabo”, Júlio Pereira ou Herman José viam-se por aqui como muitos jovens ligados à música por aqui apareciam, em demanda das palavras e concelhos de guru do jazz, Luís Villas-Boas.

Muito perto desta zona ficavam os Coruchéus, onde se reunia um diversificado grupo de artistas plástico que visitavam com regularidade o Vavá. Dourdil, João Vieira, Eurico Gonçalves, Dalila D’Alte, Gracinda Candeias, Isabel Laginhas, Manuela Pinheiro eram alguns dos mais frequentes. Muitos escritores não deixaram de marcar presença, como Lídia Jorge, Vergílio Ferreira, Mário de Carvalho, Isabel Mendes Ferreira, Luís Sarmento, Maria Afonso Sancho, Pedro Bandeira Freire, Maria Quintãs, Raquel Marinho e tantos outros. A proximidade do hospital de Santa Maria e da faculdade de Medicina fazia aqui convergir médicos como Teresa Assis ou Vitor Serra. O incremento do marketing e publicidade e o aparecimento de várias agências, levou a reuniram-se por aqui nomes como o já referido Rafael e ainda, de gerações mais jovens, César Oliveira Monteiro, Maria Emília Brederode ou Maria Eduarda Colares.

No edifício do lado eram os escritórios dos “Parodiantes de Lisboa”, por isso muitos dos Andrades e do seu elenco não dispensam a bica no Vavá. Curiosamente, actores não eram muito reiterados, mas Jacinto Ramos aparecia bastante. José Nuno Martins também foi visto. O padre Feytor Pinto era habitual comensal e jovens juristas, como Avelino Frescata ou Mário Damas Nunes aqui se encontravam com frequência. Futebolistas de sucesso também compareciam, desde Artur, Tony, Joaquim Oliveira ou Humberto Coelho. Campeão de xadrez, Fernando Ribeiro da Silva ensaiava por aqui algumas “partidas”.  

Um conjunto resistente, de que alguns ainda hoje se mantêm “activos” nos almoços de grupo, eram os comandantes e supervisores de cabine da TAP.  Fernando Antunes, Rui Luís Malva Vale de Carvalho, Jorge Alves dos Santos, Luís Vasconcelos Gonzaga, Mário Belfo de Oliveira, Vasco Melo Carvalho Santos, Joaquim Young, José Carlos Cruz dos Santos, Manuel Sumner ou Arnaldo Bacelar mantiveram hábitos desde os anos 1960 até muito recentemente.

Jovens estudantes universitários, como Nuno Brederode Santos, Cristiano de Freitas, Alfredo Barroso, Medeiros Ferreira, José Manuel Picão de Abreu, António Dias, Armando Trigo de Abreu ensaiaram nestas mesas muitas acções de protesto nesses anos de luta.

O Vavá foi, durante muitos anos, e ainda continua a ser, um elemento agregador de gerações e de movimentos. Um dos mais importantes terá sio seguramente o cinema. Pelas salas deste café passaram vários realizadores a rodarem cenas e sequências de obras, para lá de “Verdes Anos”. “Vidas”, de António da Cunha Telles, “Paisagem sem Barcos”, de Lauro António, ou “A Morte de Carlos Gardel”, de Solveig Nordlund, são apenas alguns exemplos.


*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.

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 29 Comentários

  1. Obrigado, Lauro António! Uma preciosidade que nos conduz por todo o percurso de uma geração que foi e de algum modo vai, mantendo viva uma tradição já quase apagada na memória de Lisboa “a tertúlia da mesa de café”. O Vává, enquanto não encerrar portas, será sempre um ponto de encontro.

  2. Gostei do texto, lembro-me de si sentado , se não estou em erro com o Fernando Lopes, o pai do Pedro. Sou de 64 uma geração a seguir que fazia do Vá Vá a nossa casa também, nós passávamos o dia encostados às colunas cá de fora. Éramos os punks de crista, pôpa ou cabelo espetado, correntes e ar de “mal du siécle”, foi um prazer ler o q o café representava para si. Sinto o Mesmo. Jorge Bruto

  3. Obrigado pelo excelente texto, recordações óbvias, tenho o prazer de o conhecer mas não pessoalmente, sou mais novo de 52, frequentador do nosso VÁVÁ, tive esse privilégio, todavia todas essas descritas personalidades assim as posso, chamar vi, presenciei, tinha claro a minha tertúlia, mas mais novinhos, pasmados ficávamos, com a presença, mas os bilhares eram nas nossas horas livres jogados até então.Obrigado Sr.Lauro António por me fazer relembrar esses tempos.

  4. Olá……é com muita comoção que voltei perto de 60 atrás com os olhos cheios de lágrimas e o coração cheio de saudades. Eu fui uma menina, jovem, senhora e velhora da geração Vává.

  5. Muito obrigado.
    Um texto que me fez sonhar (nunca lá estive) e me emocionou.
    Mais uma vez, MUITO OBRIGADO.

  6. Parabéns Lauro e obrigado pela militância na memória do VÁVÁ de todos nós que por lá passámos e,quase,lá vivemos. Ainda hoje se lá vai porque certamente se vai encontrar algum amigo ou conhecido,pelo menos, o Lauro e a Eduarda. Nessa história,talvez por modéstia,falta a tua iniciativa VáVadiando que durante uns anos reuniu a pretexto de um jantar com uma figura pública os “crónicos” da casa. Foi emocionante a leitura deste texto que me provocou uma catadupa de memórias,um cinematográfico flash-back da minha vida.

  7. Um grande obrigado por me ter proporcionado esta maravilhosa viagem pelo tempo. O meu pai reunia-se aqui com amigos para discutir filosofia e a política possível nessa ida década de 60. Guardo memórias, muito difusas, de lhe fazer companhia em alguns desses momentos. Que saudades sinto dessa outra Alvalade, perdida no tempo, na Lisboa da EMEL, do trânsito intenso, dos AL’s.

  8. Quando os cafés marcavam os territórios dos afectos de cada um. Lembro-me bem ver tanta dessa gente por lá, eu que adolescente aí ia de vez em quando. Vivi mesmo em frente dos Coruchéus, num tempo em que Alvalade ia do Júlio de Matos à praça de Londres. Foram tempos de grande efervescência cultural e política nesse bairro notável.

  9. Excelente texto. Frequentador tb da Vàva, desde inicio actividade no Centro Médico S. Joao de Deus.
    Representava um café “sitcom”, pois era tudo ao vivo, no momento.
    Fui conhecendo muita gente ao longo dos 40 anos que andei por ai.
    Margarida Haccioli (prof de História de Arte) tb tem um belo texto sobre a Vàva no seu livro sobre as avenidas.
    (teclado francês, desculpas).
    Carlos Pereira(profissao: ouvinte ).

  10. Obrigado Lauro. Foi leitura de grande prazer. Lembrar tempos incertos e amigos certos. Li de supetão e a cada lembrança juntei amigos e situações que então vivemos . Muito obrigado.

  11. Contar é lembrar-nos a beleza exquise de Isabel Ruth e um nome de café que lembra um tipo que olhava para a sua direita e via Pelé e Garrincha. Lisboa é também isso, ter quem conte isto e ter isto para contar. Quando eu for grande, é um dos meus sonhos, quero ter um jornal quase todo assim.

  12. Sou desse tempo.
    Vi ‘nascer’ a av de Roma, de fazer a ponte, nos idos de 49/50, e crescer os prédios de ‘gente fina’ que a ladeavam. As idas para a Eugénio dos Santos (o Camões era muito longe, segundo os meus pais). Vivia na Sacadura Cabral e claro que o Vavá era ponto de passagem. Mas era mais perto para mim o Londres, com os seus bilhares e snooker – e o ‘velho’ e sempre prasenteiro Afonso. Mas a ‘dedicação ao bilhar e ao snooker levavam-me por vezes ao Vava tal como os inícios da musica ‘louca’ era uma atracção premente.
    As tertúlias do reviralho, como era a Copacabana (já desaparecida) na Guerra Junqueiro e os cuidados com os bufos que por ali rondavam.
    O Vava tem vindo a resistir e espero bem que se mantenha, tal como os ‘quadros’ da Menez, e já agora os painéis do Querubim na Mexicana.
    Pena que tenha desaparecido a Suprema e o Sul América, onde se ‘preparavam’ exames e se miravam algumas tentações que iam pairando por ali. Obrigado Lauro e Maria Eduarda pelo vosso contributo diário para garantir que se mantenha e retomem o Vavadiando, que espero seja em breve reconhecido como ‘património imaterial’ da cidade. Abraços

  13. Gostei de ler. Com a leitura revivi momentos de outros cafés que frequentei sobretudo em tardes e noites de estudo (que as manhãs eram para dormir após madrugadas a ouvir a Radio Renascença e o Rádio Clube Português), cafés que situavam nas zonas da Praça de Londres (o Roma, por exemplo, hoje, salvo erro, um Macdonalds) e do Areeiro (como a Pastelaria S. João). Para a conversa não posso deixar de sentir o rolar dos dedos e o escorregar pela garganta da frescura de umas imperiais ou canecas na Cervejaria Munique, “instituição” também já desaparecida. Memórias da década de 70, em que frequentei o Instituto Superior Técnico.

  14. Boa, Lauro António! Sem saudosismos bara
    tos mas com a consciência da necessidade de sabermos das nossas raízes e da consistência dos nossos passos. E também importante no desfazer de mitos de classe. No fundo, muitos de nós andámos por ali, por aquele espaço e aquele tempo que moldámos e nos moldou. Abraço!

  15. Agradeço muito este belo texto, descritivo de uma das casas de Lisboa em que vivi “verdes anos”!
    Apesar de mais novo, lembro-me bem de si, de sua lindíssima mãe. Eu pertencia mais à faixa etária da sua irmã e por isso “girava” naquela “grupeta” querida e simpática… para depois seguirmos para o “Ad Lib”, ” STONES” e mais tarde “Primorosa de Alvalade”…
    Obrigado, uma vez mais, por esta revisitação aos “Golden Years” do Vá-vá!
    Abraço, Rui Gonçalves.

  16. Luís Gonzaga foi um grande amigo meu e da minha família, morava ao meu lado quase em frente ao antigo cinema Alvalade, frequentava a minha casa quase diariamente assim como a Aninhas, sua primeira mulher, dei grandes passeatas com ele, constantemente para visitar sua mãe na Calvaria (São Jorge, Batalha), contava-me constantemente as valentias do seu adorado clube, o Belenenses, deixou-me como herança entre outras coisas um móvel-aparelhagem Blaupunkt que estimo como sei lá o quê… tenho que parar, tenho uma lágrima no canto do olho…

  17. Não fazendo parte deste conceituado Público de vários valores, dos anos 1940 , haviam os clientes s/vínculo, que tal como eu frequentaram esse tão famoso espaço, o Café Vá Vá . Ficando na minha passagem de vida ,vivida na cidade Capital LISBOA..

  18. Nasci em 68 e nessa altura, mais ano menos ano também os meus pais viviam num apartamento arrendado em plena av. de Roma, ele professor no liceu Camões e ela hospedeira na TAP, e sim também eles frequentaram o Vavá, ponto de encontro com amigos, pelo que ler este texto me deu a conhecer ainda mais sobre este espaço mítico! Tão bom conhecer estas histórias!

  19. Já não passo por lá há tempos, mas este texto deixou-me com água na boca e prometo que lá voltarei em breve…também eu, adolescente e depois já universitária, acompanhei muitas vezes os meus pais e a minha irmã, em almoços e jantares no Vává, onde o meu Pai, Gustavo de Mendonça, se reunia também com “a malta do cinema”, que era o seu mundo, e lembro bem de muitos dos nomes referidos, inclusivé de si, Lauro António. Obrigada por esta homenagem a um espaço de tantas e tão boas memórias, que o tornará vivo para sempre !

  20. Gostei muito deste texto, que me fez recordar muito do tempo em que fui cliente assíduo do VÁVÁ. Recordo de lá ver alguns dos nomes citados, que não pertenciam à minha tertúlia. Gostaria de um dia ler também a história da Mexicana e até do Copacabana, de que fui cliente assíduo desde os meus tempos de estudante e antes de “caír” no VÁVÀ, e onde vi nomes famosos da politica (Alm. Mendes Cabeçadas entre outros), do espetáculo e da TV.

  21. Obrigado, Lauro António. Abraço com emoção tudo o que aqui se evocou, mas chamo timidamente a atenção para um outro “espaço” – como agora se diz -, fugazmente referido: a “Sul América”, praticamente uma extensão do Liceu Rainha Dona Leonor.

    Nos anos 70 e 80, os da minha juventude, acredite que só a escadaria equivaleu a todos os feitos possíveis e imaginários decorridos nas universais mesas do seu querido Vá-Vá. Em homenagem a todas essas alunas, as mais bonitas do mundo, que subiam e desciam com a graça etérea de jovens deusas em formação, aqui fica o ramo de rosas mais bonito que alguma vez a Romeira preparou.

  22. Uma interessante e bem documentada crónica do Cineasta LAURO ANTÓNIO.
    Uma bela evocação, o regresso ao Passado de um dos mais históricos Cafés de Lisboa e das suas tertúlias : O VÁVÁ !

  23. Para quem, como eu, viu construir o Nº100 da Av. E.U.A. e frequenta o VáVá desde a sua inauguração, este seu texto foi um desfilar de amigos e de emoções desde os meus 15 anos até hoje, pois continuo a frequentar o VáVá diariamente. Bem-haja caro vizinho por esta catadupa de memórias que trouxe a todos nós!

  24. Obrigada – matar saudades, muitas.
    Até breve e beijos

  25. Que bom ter escrito este texto, la o vi a si e a muitos que refere, que saudades de outros tempos ai passados, com o meu pai, os meus amigos de sempre, a tomar a bica e a tomar tudo o mais que indica e nos lembra.

  26. Que bom ler isto Lauro!
    Texto rico e inspirado escrito com amor.
    Gratidão por me teres incluído no grupo dos escritores. Agora também o sou, embora na altura estivesse em outros três grupos: estudante de Medicina, atriz e modelo/manequim. As Belas Artes e jornalismo só vieram mais tarde.
    Temos vidas muito ricas e interessantes.
    Ver é se fazemos sair o meu romance passado em 1974, cheio de peripécias revolucionárias e centrado no nosso amado Vavá.
    Beijinho grato 0:)

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